Por Prof. Ms. Gerson Flores Gomes.
“A leitura
do mundo precede
a leitura da palavra”
Paulo
Freire[1]
Às vezes, fico tentando ler o mundo... como
seria bom se o mundo pudesse contar para mim a sua linguagem, explicar a sua
semântica, desvelar a ortografia mística dos seus ritos e significados. Mas não
é assim. O mundo se transforma diante dos meus olhos, a cada instante do inflar
dos meus pulmões, do bater das asas da minha imaginação dispersa na multidão de
cores e sentidos do coração, e não me entrega mais os seus caminhos... nem sua
foz.
Há algum tempo li sobre uma caverna. As cavernas
são algo misteriosas, trazem consigo um misto de ansiedade, agonia e
curiosidade. O problema da escuridão é que quando saímos para a luz,
inicialmente, ainda continuamos cegos, por um tempo... será que enlouqueci ao
escrever?
Quando eu era pequeno, na minha infância, tudo era
mais fácil. Tinha em minhas mãos as certezas das coisas do mundo. Aprendi a ler
e a escrever com minha mãe. No fundo, há algo de maternal na escrita, algo de
crescer e dar frutos. Uma expectativa sinistra de que alguém leia o seu filho,
a leveza do medo da crítica e o peso dos olhares julgadores. Talvez as mães
defendam seus filhos com este sentimento em seus corações, não sei, mas o
sentir é tão diferente de uns para outros.
Uma coisa sobre a leitura e a escrita, que não
sai dos meus sentidos, é a gostosa e cheirosa experiência de um livro. Sim, não
só nos leva a mundos distantes, ao interior do espetáculo da vida, como à
largura dos limites infinitos do universo. E o cheiro. O aroma das páginas de
um livro entrando pelo nariz e afetando o cérebro. Afetividade. O sentir da
textura das páginas e o encantamento das folhas virando. Nada melhor do que um
bom lápis para deixar minhas cicatrizes nas páginas do pensamento dos autores.
E ainda, por fim, o sentido do insaciável desejo de ler em contraste com o alívio
de ter vencido as trezentas páginas daquele conto. Qual será o próximo?
Daí vem a mudança. Esta é uma jovem com roupas
antigas e olhos sedutores. Onde foram parar os momentos de curiosidade, de
sensibilidade, da chuva batendo na janela, um bom café e o cheiro das páginas
do livro? Romantismo. Me disseram, certa vez, que tudo que acabasse com ‘ismo’,
não era bom de se ter, são extremos que te levam para longe da realidade.
A tecnologia mudou o mundo em que,
analogicamente, vivi. De repente sugiram telefones, equipamentos, zumbidos e
barulhos diferentes, telas iluminadas e a pressa. E aquele mundo do romantismo,
onde escrevíamos uma carta em papel desenhado, pingávamos perfume e enviávamos
pelo correio? São duas semanas dizia o carteiro, a espera ansiosa, taquicardiamente
amorosa pela resposta. Não mais, tudo isso mudou. Alguém falou num tal bug do
milênio, onde tudo iria acabar. Ano 2000. Tudo acabou. O que era analógico,
virou digital. O que era real, virou virtual. Redes sociais, contatos virtuais,
e a velocidade.
Aquela carta não tem mais perfume, mas tem
outras maravilhas inimagináveis: vídeos, fotos e muitas outras funcionalidades.
No tempo da pressa, onde a vida passa na velocidade da luz, falar com os entes
queridos não precisa mais da simbologia das antigas palavras, mas dos tecnohieróglifos
e criptocaracteres dos novos signos e símbolos de um mundo digitalmente novo.
Não preciso mais aguardar tanto tempo para ver quem amo.
Tá tudo tão diferente. Há uma impressão que
deixei algo pra trás, que esqueci de atender a algum chamado, que fui lento
demais. Os livros, tapetes mágicos de minha lembrança, só lá ficaram, pois tudo
está tão distante. A velocidade. Não temos tempo para nos deliciarmos sobre um
bom livro. Agora eles se modernizaram, viraram eletrônicos. Tudo está assim,
desse jeito. O que era da língua mãe, agora está em inglês.
Lembro que nos remotos tempos de minha vida
acadêmica que, quando ia para a aula, sofria com o peso dos livros. Ida e volta
na musculação. E as pesquisas... Tinha que ir à biblioteca e buscar nas
centenas de fichários a localização das obras que queria consultar. Este mundo
melhorou. Hoje coloco uma parte de uma palavra no celular e, como num passar da
capa de um toureiro, um veloz motor de busca traz milhares de verbetes, referências,
citações, artigos e livros inteiros. Um excesso de informação. Não me canso
mais com o peso dos livros. Engordei, fiquei preguiçoso e muito mais produtivo.
Os heróis mudaram. Os tempos mudaram e muitos
não conseguiram correr esta corrida. No partidor do tempo, a largada é dada
quando alguns já estão encilhados, outros ainda procuram o pelego. Mas e a
caverna?
Um dia desses, um grande herói com uma pena na
mão, escreveu: estes espelhos negros e profundos, que me puxam para uma caverna
de ilusões, lugar de poderosos seres sombrios que me desejam muito mais do que
eu a eles, me mostram imagens reais de uma outra verdade... e só desejam o meu
tempo, minha vida. Olho para os espelhos negros dos aparelhos como quem olha
para a escuridão de uma caverna e, como Platão transcrevia, uma nova realidade
me prende na caverna, sem que possa sair dela e ver o sol - preso a correntes e
algemas que a mim mesmo amarro. Um ensaio sobre a cegueira destes tempos.
Mas ainda há alguma esperança na frieza destes
espelhos. Os meus carinhos agora são luminosos. Leio os meus livros numa
plataforma digital, em qualquer tempo e em qualquer lugar, o livro está
onipresente na minha mão. Não tenho mais o lápis na mão, o cheiro e a sensação
do papel, mas tenho a eletrônica vaidade de ter tudo a um clique, ou toque,
ou... já mudou, outra vez.
Estes dias li, entre os milhares de jornais e
notícias que este mundo novo me oferece, que já descobriram um jeito de colocar
as notícias e leituras diretamente na sua cabeça, na sua mente, nos pensamentos.
Qual é a leitura de mundo que leem para minha consciência? Ideologias, tudo tem
pelo menos uma ideologia. A fluidez da informação correndo nos arco-íris, veias
invisíveis de satélites. Era tão bom ter tempo para sonhar, olhar para as
estrelas, para ler o mundo e entender os seus sinais. Olhar para as plantas
crescendo. Vida e morte no tempo certo, folhas, depois flores e frutos, depois
o secar, transformar-se em pó e adubar a terra. No meu espelho negro, clico
direto no final do vídeo, não tenho mais tempo pra isso. Um like indica que
ainda existo, persisto.
Olho para o lado e vejo todo mundo. Todos presos
no espelho. Uma necessidade de ter, roubo, violência e morte, e o pior dos
sentimentos, a indiferença. Este novo mundo da tecnológica indiferença. As
pessoas não têm tempo para as relações pessoais, só para likes virtuais.
Sozinho, o mundo está sozinho diante do espelho. Que mundo é este? Será que estou no fundo de
uma caverna?
Bem ao menos existem os autores e os editores,
não é? Tudo mudou, uma nova forma de ler teve que ser criada. Hoje, até os
ebooks estão solitários. Não tem mais as prateleiras iluminadas das livrarias,
mas uma livraria inteira na tela do computador, onde você ‘baixa’ seus livros
virtuais. Pode ser possível viver o digital, mas será que ainda conseguiremos
ler o mundo? Ô mundo, tu ainda está aí? Como diria Robert Silverberg: outros
tempos, outros mundos
A luz se acendeu diante de mim, um novo amor, um
apego inexorável pelo novo. Não me sinto mais sozinho em uma caverna escura.
Ritos de passagem. O analógico teve seu tempo. Hoje o mundo se mostra para mim,
faço a sua leitura, escrevo minhas palavras e transformo a minha realidade. Se
não há mais a terrível matança de árvores para me saciar, hoje temos a
particular satisfação de preservar. Viu, como são boas as mudanças, mesmo que
não as entendamos no princípio, elas sempre trazem novas e boas oportunidades.
O e-book me salvou. Quanta informação,
interatividade, novos sonhos, novas memórias e experiências. A caverna talvez
não seja mais uma caverna do dragão, mas um incrível caminho ladrilhados com
bits e bytes. Se antes eu tinha que ter um lugar de leitura, com o virtual,
todo lugar é de leitura. Leitura de mundo, leitura da palavra. Adeus para os
tempos de infância. Que venha o século das novas luzes. Tecnosozinho, à luz da
caverna, com novos sonhos e esperanças.
Prof. Ms. Gerson Flores Gomes
Doutorando
em Educação na Linha de Pesquisa Cognição, Aprendizagem e Desenvolvimento
Humano – PPGE/UFPR, membro do Grupo de Pesquisa em Envelhecimento Humano – GPEH/UFPR.
Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná - UFPR, Graduado em
Gestão Estratégica das Organizações, com foco em Gestão financeira pela
Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. Docente em Educação
Empreendedora, Administração, Logística, Inovação e Qualidade Total em cursos
de educação profissionalizante de nível técnico. Docente em metodologia da
pesquisa científica em cursos superiores. Foi empresário e consultor de
empresas.
Agradecemos ao Gerson pela colaboração. Seja sempre bem-vindo!
ResponderExcluirEstou muito honrado pelo convite e por deixar algumas linhas nesta excelente Editora!! Parabéns pelo seu trabalho de publicação e divulgação do conhecimento!
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