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Meu último Dia do Professor: uma narrativa feliz

 

Dilso com alunos do Ensino Médio

Por Dilso J. Dos Santos.

Não, nesta casa não pretendo pôr papéis de parede negros, nem móveis castigados pelo abuso das gordas bundas das músicas da vitrola cansada do mesmo disco. Nem falar de visitantes promíscuos, trapaceiros, aproveitadores e muito menos de fascistas. (Bom, talvez só um pouquinho). Quero convidá-los a me acompanhar ao meu quartinho dos fundos onde guardo meus livros, minhas memórias e meus bonecos de super-heróis. Sentem-se, aproximem-se para ouvir melhor a história de um professor, apesar de tudo, feliz.

Final dos anos 1990. Naquele tempo eu trabalhava de safrista numa fumageira. Desde os catorze anos de idade estive com a alma enfiada em fábricas ‘desfabricadoras’ de gente. Mas aqui, neste momento histórico dos de mim, tinha dezoito anos, e meu horário era: das duas horas da madrugada, às onze e meia; e na escola: dezenove horas, às onze da noite (último ano).

Bem, tive uma ótima professora que, por algum motivo, viu algo diferente em meus olhos. Falava de livros como se fosse de comer, porque em dias perfeitos, como quis Bachelard, a felicidade é comestível. Concordo, pois ela investiu em mim com a moeda mais preciosa do mundo, a esperança. Nos livros – alguns roubados da biblioteca da escola –, encontrei uma habilidade ímpar no que diz respeito a sentir em “braile” cada palavra, cada imagem e todos os sons (melopeicos) no grande espetáculo de minhas entranhas. Então, pelo impacto das lonjuras, afastava-me de tudo quando me recolhia para meus próprios dentros.

Mas como cantou Belchior, “com lágrimas nos olhos de ler o Pessoa e de ver o verde da cana...” Pois é, depois que se apessoa nas pessoas do Pessoa, desassossegamos. E se ainda formos cortadores de cana, industriários, enfim, proletários, jamais voltamos do mesmo modo para a terra da exploração. Passamos a pertencer a outra raça de mundo, àquela, em detrimento à terra cinza, que se colore em criticidade, utopias e em justiça social. Difícil voltar deste ponto... Como era mesmo? “Com lágrimas nos olhos de ler o Pessoa...”.

Havia nas indústrias tabagistas um grupo de universitários ali instalados para aprender na prática como funcionavam as linhas de produção, as máquinas e por último, e se desse tempo, as pessoas. Tive sorte. Um deles (impressionado com aquele “mestiço” sujinho de terra fina de fumo, baixinho, magro como um camelo depois de cruzar o deserto e sentado por exatas duas horas de seu intervalo diário com livros acolhidos nas cochas a libertarem-se para dentro do que já parecia ser uma cáfila sedenta por rios) me percebeu. O pó colado no rosto não deixava de denunciar um aparente deserto, ali éramos todos areias sem a doença dos oásis, acho que menos eu.

Certo dia, e não sei se por pena ou fetiche pelo meu exotismo, um daqueles aprendizes acadêmicos chegou até mim e perguntou:

– Tu conheces a biblioteca da Unisc?

– Nunca nem entrei lá!

– Eu posso te trazer livros emprestados de lá, se quiser?

– Quero sim...

E me deixou ali pensando “nos verdes da cana...”.

– Viu, vou fazer Letras! – dividi a novidade com uma colega que varria o chão da fábrica.

– Cuida do teu serviço, rapaz! Pobre que sonha alto sempre se esborracha no chão.

– Clarice, mas meu coração bate diferente todas as vezes em que leio um livro, um poema...

– Sonha, guri. Pode sonhar, porque sonhar ainda é de graça.

E os tambores silenciosos (‘rerritimados’ em Josué Guimarães e Jorge Amado) não deixavam aquela Bahia carnavalesca por detrás dos meus pulmões. Pronto. Resolvi ouvi-los, e o resto parece que o universo desacomodou das poeiras em direção àquelas Letras.

Contudo, precisava de algo mais do que o tempo curto de safra. Um concurso abriu em sintonia aos projetos e apostei no que sabia fazer: ser operário. Fui aprovado. E logo veio o vestibular e entrei, também, para a tão sonhada Unisc.

Os anos andaram depressa. E no final de sete anos e meio passei a trabalhar como professor. Quase nem acreditava naquilo. Eu, o primeiro operário a que se teve notícias dando aulas para suas próprias turmas. Ah, tempo de glória ... e nenhuma nota em jornal algum!

Então, preocupado com a mudança de governo (resquícios dos músculos intelectuais desenvolvidos junto aos livros de Paulo Freire) passei a ser perseguido pelo Coordenador da Educação, passando por três escolas até a venda final de meu couro marrom (e já surrado) ao meu algoz. E isso é uma loooooonga história. 

Lembremo-nos dos sorrisos das meninas e dos meninos leitores inspirados a voarem como albatrozes. Dos adultos do EJA cheios de sabedorias a dividirem conosco noites de pura troca e aprendizado... E neste dia do professor, (de 2018) acabou o sonho daquele safrista “enterrado”. Não que eu dê razão à Clarice por sua escuridão ‘desfuturada’, mas a confirmação de que a elite nos odeia ocupando espaços importantes na sociedade, no que nem vou começar a falar das patologias acordadas por isso e tal.

Pelo visto Machado de Assis tinha razão: “A vida é uma ópera e uma grande ópera. [...] Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu.”

Pronto, já podem ir. Meu quartinho é apertado, não acham?! Pois se é.

Feliz Dia do Professor!

Na UNISC - Universidade de Santa Cruz do Sul

Dilso José dos Santos
 é poeta e cronista nas horas vagas. Professor. Nascido e residente em Vera Cruz, Rio Grande do Sul. Graduado e Mestre em Letras. Publica crônicas em vários jornais, hoje, no Riovale Jornal. Publicou "Desassossegados" e teve participações em outros livros. Vencedor do Prêmio "Cem anos de morte de Machado de Assis e nascimento de Cyro Martins e Guimarães Rosa".
Autor do e-book Crônicas de Desacontessências (Camino Editorial, 2021). Para conferir CLIQUE AQUI .

Comentários

  1. Nossa gratidão ao professor e escritor Dilso José dos Santos! Também autor da Camino 🙏

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